*VETUSTA

oficina 10“Puta que o pariu”, murmurou Antonio Carlos, no momento em que avistou sua escova de dentes mergulhada num copo, junto à dentadura da avó. Moravam sob o mesmo teto, desde que os pais de Toninho faleceram no desastre de automóvel. Viúva, tomou para si a criação do neto. Quando adoeceu, inverteram-se os cuidados.

Passavam das dez horas da noite quando os pais da noiva, finalmente, perguntaram onde estava a sua avó. Constrangido, explicou que a velha não passava bem, preferiu ficar no quarto. Todos acharam normal. Tranquilo. Uma senhora de idade avançada tem que ficar resguardada mesmo.

E o jantar transcorreu sem alteração, até o momento em que a vetusta resolveu sair do resguardo. Surgiu do nada, inconveniente. Não houve tempo para impedi-la. Irrompeu sala adentro. Nua, descabelada, corpo lambuzado em fezes. Rodopiando, como se dançasse uma valsa que só ela podia ouvir, fez a volta na sala e sentou à cabeceira da mesa.

Aparentemente, todos agiram como se a visão daquela velha nua, besuntada em cocô, fosse a coisa mais natural do mundo. Como se em toda família houvesse uma vó tresloucada. A mãe da noiva, solícita, resolveu ajudar. Levantou-se, tirou o próprio casaco e a cobriu.

Conseguiram arrastá-la para o quarto. Chamaram o médico, que lhe aplicou um sossega-leão na veia. Receitou novos remédios tarja preta. Faz algum tempo, desde que fora diagnosticada aquela doença rara, progressiva e fatal, Toninho passou a ter pensamentos estranhos. O incidente foi a gota d’água. Sentia-se miserável ao desejar aquilo, mas era a única coisa que importava.

Transcorriam meses e anos. Médicos faziam prognósticos e ela resistia. Cada vez pior, exigindo maiores e dispendiosos cuidados. Toninho vinha desgostoso, acima de tudo, porque gastava montanhas de dinheiro em remédios inúteis, equipes home care, médicos e hospitais que nada resolviam. Na madrugada daquela mesma noite, disposto a tudo, entrou no quarto da vetusta.


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Gabriel Moojen, Assis Brasil e eu.

*Em 1992, ingressei no curso de jornalismo da Famecos. Também fui selecionado para a Oficina de Criação Literária da PUCRS, ministrada pelo escritor Luiz Antonio de Assis Brasil. Tinha 20 anos quando frequentei as aulas do mestre. Passeávamos pelos gêneros literários; romance e novela, mas o principal estudo era o conto. O trabalho de dois semestres culminou no livro. A coletânea de autores foi a primeira vez que publiquei. Em 2015, aos 43 anos, dou nova edição ao conto capenga que escrevi aos vinte.

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