JOEL

ponta grossa 6

Ainda era noite quando saiu de casa. O vento soprava forte, desorientando a chuva que caía fraca, fininha. Precisava pedalar sete quilômetros até o asfalto, uma ardência queimando no estômago. Às vezes, ficava meio zonzo com as pontadas intermitentes na cabeça. Não comera nada nas últimas vinte e quatro horas.

Desocupado, investira seus derradeiros seis reais numa garrafa de cachaça, setecentos gramas de carne com osso, um pacote de arroz e dois maços de cigarro falsificado. Marilene, desde que tivera o bebê, nunca mais trabalhou. Não tinha carteira assinada, precisou abandonar a usina de reciclagem. O único rendimento era o que Joel trazia da rua, quando pegava algum biscate. Cortava grama, pintava casas e muros, mexia em eletricidade e conhecia um pouco de hidráulica. Deu uns tempos pra cá, por causa da bebida, perdera toda a freguesia.

Naquela madrugada, antes de sair, sorveu num gole o resto da garrafa que deixara escondida embaixo da casa. Suava frio, pedalando em direção ao asfalto. Pela primeira vez, sentiu uma pontinha de arrependimento por ter vendido o cavalo e a carroça. Poderia levar a criança ao médico, em vez de sair para buscar o remédio. Desde o primeiro dia, ainda na maternidade, desconfiou que talvez não fosse o pai de Mariângela. A enfermeira explicou: às vezes, por causa da herança genética – Joel nunca entendeu isso direto – pode acontecer da criança sair mais clarinha, ou escurinha, conforme o caso.

Precisava de um trago. Não conseguia controlar a tremedeira das mãos. Pedalava rápido, a favor do vento. No bolso de trás da calça, enroladas num plástico, trazia a carteira de identidade e a receita do médico. Mariângela teve pneumonia, contraiu infecção hospitalar e ficou quase três meses internada. Saiu do hospital com quatro caixas de amostra grátis. Joel achou que fosse desnecessário buscar mais remédio no posto de saúde. Mariângela não tinha febre, nem tossia, conseguia dormir à noite e parecia ter se recuperado completamente. Marilene implorara tantas vezes, a continuidade do tratamento era uma recomendação do médico.

Moravam num terreno úmido, invadido, numa área verde e sem infraestrutura. Tinham água e luz, mas o esgoto corria a céu aberto no valão defronte a casa. Foram os últimos a chegar no loteamento clandestino. Joel pegou as chaves do casebre, mudou-se com a mulher e não chegou a pagar o antigo proprietário. Marilene, escondida do marido, arranjou um empréstimo na cooperativa dos catadores de lixo. Tentou saldar parte do débito. Joel encontrou o dinheiro, mocozeado atrás do armário. Bebeu no meretrício e Marilene foi expulsa da cooperativa. Logo em seguida, engravidou.

O dia estava amanhecendo quando alcançou o asfalto. Dali até o posto de saúde mais quarenta minutos de pedalada. Chegou exausto, molhado, com as agulhadas na cabeça passando o limite do suportável. Aguardou na fila, até sete e meia da manhã. Pegou a ficha de atendimento e esperou que abrissem a farmácia. Logo descobriu que o medicamento prescrito estava em falta naquele posto, e que talvez pudesse encontrá-lo na central de medicamentos do município, do outro lado da cidade. Foi onde topou com o Ernesto.

Ernesto, assim como ele, também fazia biscates. Tinha uma carroça, ganhou no jogo do bicho e investiu numa Kombi de frete. Fazia carretos, vendia lenha, carregava sacos de cimento e qualquer coisa que entrasse na caçamba, incluindo bodes, cabritos, galos e galinhas utilizados em rituais de umbanda. Naquela manhã, em frente à central de medicamentos, convidou Joel para ajudar num serviço. Trinta e cinco reais. Carregar e montar duas camas de solteiro e um armário de cinco portas. Coisa rápida, antes do meio-dia estaria liberado. Joel não vacilou. Meteu a bicicleta na Kombi e partiu.

Ainda bem que o Ernesto tinha cigarros e pagou um sanduíche de mortadela com café preto, o suficiente para amenizar a horrível cefaleia. Difícil era controlar a tremedeira das mãos. Aguentou firme, até o último minuto. Precisava daquele dinheiro para tomar alguma coisa. O resto levaria pra casa. Mariângela estava sem febre, poderia esperar mais um pouco.

Faltavam quinze minutos para a uma hora da tarde quando terminou de apertar o último parafuso do armário. Recebeu o dinheiro, pegou a bicicleta e saiu pedalando em direção à central de medicamentos. Conseguiu obter uma caixa do remédio. Naquele momento, sentindo-se aliviado, resolveu que merecia tomar um traguinho de butiá.

Parou no bar da velha Mirtes, lá no asfalto, pouco antes de chegar na estrada de chão batido. Vinha cansado, suado e fedorento. Encostou a bicicleta em frente ao boteco e foi logo pedindo um butiá. Tomou dois martelos, comprou um maço de cigarros e ficou por ali, escorado ao balcão, sentindo os primeiros vapores do álcool. Era uma sensação agradável. Revigorante.

A Mirtes vendia de tudo naquele bar, inclusive as sobrinhas de quinze e treze anos. Trepavam num cubículo sórdido, a dez reais, em cima de uma cama guenza. Joel ainda não estava bêbado quando entrou naquele quartinho encardido. Mandou vir uma cerveja e a guria de quinze, que era mais parrudinha. Beijou na boca, pelou, bebeu cerveja no umbigo e serviu-se daquele corpo como se fosse um bárbaro ensandecido. Depois ainda ofereceu cinco reais, pra fazer por trás, escondido da velha. Ela aceitou.

Saiu de lá triunfante. Contornou o balcão, piscou pra dona dona da casa e procurou uma cadeira. Sentou à mesa perto da janela, de onde podia enxergar o movimento dos carros no asfalto. Tomou outra cerveja, acendeu um cigarro e fumou descansado, com gosto. Pediu um litro de cachaça, pagou a conta. Botou a garrafa embaixo do braço, subiu na bicicleta e saiu pedalando, meio torto, desequilibrado. Eram quatro horas da tarde.

Talvez as coisas pudessem ter se encaminhado de outra forma, caso Mariângela não tivesse nascido branca. Desconfiou logo de cara daquele alemão que trabalhava no escritório da cooperativa, sempre dando em cima da Marilene. Também nunca entendeu a explicação da enfermeira. Mariângela tinha nascido branca, de olhos claros, e isso era o bastante.

Pior de tudo eram os falatórios: vizinhos, parentes, conhecidos e até o pessoal da sinuca. Joel ouvia os comentários, nitidamente, mas fazia de conta que não. De certa forma, pensou, talvez Marilene não fosse tão culpada. Foi ele quem dormiu fora de casa, inúmeras vezes, caindo de bêbado, nos botecos de sinuca ou na putaria. Fazia isso desde sempre, mesmo antes da criança nascer.

Quando chegou em casa com o remédio, não estanhou que ele estivesse ali, àquela hora da tarde. Também não quis brigar, nem impediu que as duas entrassem no fusca do alemão. Entendeu, permitiu que elas fossem embora. Não disse nada, apenas ficou olhando. Esperou o carro partir, levou a bicicleta para os fundos e entrou na casa. Passou o resto da tarde atirado no sofá, bebendo, fumando e escutando AM no radinho a pilha.

 

Conto publicado originalmente em 2006, No Orkut dos Outros é Colírio (pág. 09).

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